Opressão e desrespeito com o hip hop na Virada Cultural 2008

Revista policial, abuso de autoridade e distanciamento marcam o ‘Baile Chique’, palco destinado ao hip hop na 3ª edição do evento Virada Cultural

por Jéssica Balbino

Após viajar 280 km de ônibus, depois de ter trabalhado 12h seguidas, cheguei para a Virada Cultural. Fui porque várias atrações prometiam, entre elas, grandes nomes no palco do hip hop, como os precursores Thaíde, Dj Hum e o pai de toda esta cultura, Afrika Bambaataa, como atração de encerramento.

Mesmo sem nunca ter ido a uma Virada Cultural, esperava um evento bem organizado e estruturado, com policiamento para garantir a segurança do público e não para constranger.

Ao chegar, me deparei com vários palcos, entre eles o principal, onde marcava atrações como Gal Costa, Zé Ramalho, Teatro Mágico e Marcelo D2, citando este último como rapper.

Agora eu questiono. Se ele é um rapper, o que estava fazendo no palco principal do evento? Por que não estava no palco do hip hop, ao lado de tantos outros nomes bons? E reafirmo questionamentos já feitos. Qual é a representatividade do Marcelo D2, dentro da cultura hip hop, para ocupar o palco principal? E o Afrika Bambaataa?

São indagações ... longe ainda de serem o problema principal deste artigo.

Num mapa distribuído em vários pontos da Virada Cultural, os palcos de shows eram mostrados, qual não foi minha surpresa ao ver que o palco do hip hop ficava bastante longe dos demais, localizado na praça Cível Ulysses Guimarães, no Parque Dom Pedro. Pelas informações do mapa e de moradores de São Paulo, eu deveria pegar um metrô, do Vale do Anhangabaú até a Praça.

Contudo, pela inexperiência no evento e na maior cidade do país, somente ao descer do metrô, percebi que estava mais longe do local do que se tivesse ido a pé de onde eu estava anteriormente.

Um cidadão ainda me disse que eu deveria pegar um ônibus da estação do metrô até o Parque Dom Pedro, pois o caminho feito a pé poderia ser perigoso, ‘pelo povo que passava por ali’. Não questionei e fui. Seguindo um som distante, cheguei próxima a um local pouco iluminado, onde, para entrar, deveria passar por um corredor de grades.

Mais uma surpresa na noite e esta bastante desagradável, quando vi meus companheiros de cultural sendo revistados por policiais, aliás, um grande número de policiais, bem maior do que nas outras concentrações do evento.

Não contentes em efetuar a revista pessoa, expondo a cultura hip hop novamente à margem da sociedade, dizendo, nas entrelinhas, que somos todos bandidos e que expomos a sociedade à riscos, os policiais faziam com que colocássemos as mãos na cabeça, ou estendidas na grade e abríssemos as pernas, para a revista completa.

Sem estar satisfeitos, boa noite ou bom dia pra quê? A estupidez costumeira tomou o devido lugar, quando os policiais, cheios de abuso de autoridade, abordavam os manos e minas que chegavam ao local com o único intuito de curtir a virada cultural com o tipo de música preferido.

Fácil notar também que a cada árvore do parque havia três policiais, ou seja, mais policiamento do que público, sem falar na cavalaria também presente no maior evento cultural do país. Lamentável.

Já me sentindo um lixo, pela decepção do local do show, o pequeno público e a revista policial, tirei uma foto da revista e fui lesada nos meus direitos de jornalista formada por uma cabo, que não sabia nem falar, mas, abusando da autoridade, me fez apagar a imagem, me impedindo não apenas de curtir meu estilo musical preferido em paz, como de trabalhar e exercer minha profissão, com todos os direitos previstos pela lei.

Nos shows, meia dúzia de gatos pingados, isolados, discriminados e julgados tentavam curtir o rap, com uma aparelhagem de som desregulada, o que denota ainda mais o descaso da organização do evento e também da sociedade com a cultura hip hop.

Contudo, mesmo sofrendo com as mazelas impostas pela sociedade, o público do ‘Baile Chique’ comportou-se como deveria, ou seja, como sempre, civilizadamente, porém, com a dispersão deste, os policiais fizeram questão de aproximar-se do palco, num alvoroço, como se os negros e pobres ali presentes pudessem, a qualquer momento, atacar alguém, como animais mitológicos.

Não agüentei e fui embora logo. Decepcionada por ter viajado e investido num evento cujo o meu estilo estava sendo desprezado no último grau.

Em outras partes da Virada Cultural, num público estimado de quatro mil pessoas. No palco da dança, no Vale do Anhangabaú, onde público tinha até cadeiras, um garoto de uns 12 anos cheirava cola livremente em frente aos policiais que faziam a ‘ronda’ por ali e não satisfeitos pela ronda, faziam também vista grossa a isso.

Um pouco mais adiante, um grupo fumava maconha livremente na cara dos policiais, coisa natural e ninguém tomou geral por isso, foi impedido de fotografar, ou ficou isolado em suas comemorações, num parque ‘enjaulado’ e a parte do evento.

No outro dia, voltei para o show do Afrika Bambaataa e fiquei num evento, onde não havia constatado na noite anterior, não havia barracas vendendo comes e bebes e para tomar uma água, tínhamos que sair do pátio feito pela organização da Virada Cultural.

O pai do hip hop chegou para tocar para o maior público daquele palco, algo em torno de seis mil pessoas, contra as 50 mil que foram aos shows do palco principal, na avenida São João.

Quando o criador de toda a cultura subiu no palco, ficou por mais de meia hora regulando o som, que estava mal sintonizado, ou seja, outra vergonha para o público do hip hop.

Em entrevista ao Jornal da Tarde, o secretário de Cultural, Carlos Augusto Calil justificou o local escolhido. “Houve uma certa inocência em colocar, no ano passado, o palco de hip hop na Praça da Sé, que passa por um processo de urbanização.”Segundo o secretário, para evitar novos incidentes, os espaços forma melhor distribuídos e adequados ao público.” Criamos condições para que o público de hip hop, por exemplo, que tem um comportamento diferenciado, possa curtir a festa deles.”

Eu pergunto, que condições? Que público? O que este secretário entende de hip hop para fazer isso? Não subestimando, mas creio que não entenda mais do que o preconceito criado acerca da nossa cultura, pois referir-se ao ‘comportamento diferenciado’ como se fôssemos bichos agindo por instinto foi demais.

Durante a semana que se seguiu a Virada Cultural, minha caixa de e-mails fervilhou de mensagens debatendo o assunto. Vários sites também publicaram artigos, matérias e indignações.

Cada um mantém a sua opinião acerca dos fatos acontecidos.

Na minha? Culpa dos dois lados. O primeiro, da falta de comprometimento do hip hop com ele mesmo. Cadê as lutas? A prática da pregação de Bambaataa por ‘paz, amor, diversão e união?’, quem é que luta por isso? Quem tenta mudar nossa situação de escravidão moderna? O que o hip hop, ou seja, nós mesmos fazemos por isso?

Só escrever um texto adianta? Publicar várias opiniões dispersas resolvem?

É, eu também estou publicando a minha, e como todos, acredito que o desabafo e o compartilhamento dos pensamentos possa nos levar a algum lugar.

Jogo o desafio aos manos e minas, que queiram reunir-se, na representatividade da nossa cultura, mostrando ao secretário de Cultura, aos novos eleitos neste ano eleitoral e a população que não podemos mais ser tratados como escravos e que a nossa inteligência não pode mais ser subestimada em revistas policiais. Que temos sim, direito de trabalhar e exercer nossas profissões e ainda mais, de termos o que os outros estilos musicais tem.

No mais, acho que todos queremos é a Paz.

Salve. Paz.

Jéssica Balbino – mineira, 22 anos, moradora da periferia de Poços de Caldas, jornalista formada, autora do livro Hip Hop – A Cultura Marginal, integrante do livro Suburbano Convicto – Pelas periferias do Brasil, colunista do site Leia Livro e do Ciranda Internacional de Informação Independente, defendendo as causas da cultura hip hop.

Voluntária de trabalhos com hip hop na periferia, atualmente atuando como repórter no Jornal de Poços, idealizadora da série de reportagens Margens da Sociedade, com pessoas de muito conteúdo e excluídas do restante da população.

Mantém o blog Cultura Marginal – http://jessicabalbino.blogspot.com

PIRITUBA PERIFERIA por Mannu U.F

Pirituba periferia, cresci e ainda moro aqui e ai já se vai mais de 20 anos. Lembro da antiga, lá por volta de 1990, eu tinha sete anos de idade, quase todas vilas, ou melhor favelas, ainda continuam com os mesmos nomes. Buraco do Sapo, Santa Terezinha, favela do Monte Alegre, Saloá, Morro do Rato e favela do Nardini.

Continuam com os mesmos nomes porque, com muita sorte, a tropa do governo não desabrigou ninguém dessas quebra, mas algumas favelas daqui não tiveram a mesma sorte, como as favelas da Nassau e do Anastácio, que hoje não existem mais.Naquela época, tinha muito barraco, ruas de barro, mato e esgotos improvisados. Como é de praxe brasileiro ser jogados em favelas, puraqui também não foi diferente, pois muitos pais de famílias se alojaram nessa região pobre, uma grande maioria vindos de outros estados.

Eles acreditavam que aqui em São Paulo melhorariam a vida e teriam oportunidade de empregos. Hoje, em 2007, mudou a madeira pelos tijolos vermelhos, mas ainda em alguns pontos tem favelas que não tiveram uma certa evolução e continuam com barracos de madeira, inclusive em áreas de risco, quase duas décadas depois o descaso continua, vai vendo.Pra quem nasce em favelas, o peso do problema é outro, tá ligado. Por ser tão embaçado viver em situação desfavorável, muitos buscam a criminalidade, pra tentar dar uma volta por cima e ter o que nunca se pode ter.

É aquela fita, se ele pode ter porque eu não?Muitos irmãozinhos, logo cedo, vão crescendo com esse tipo de pensamento. Hoje em dia, muitos influenciados pelos meios de comunição e esquecidos na miséria, comendo o pão que o diabo amassou, se tornam um alvo fácil do sistema.Eu mesmo vi muitos que poderiam ter um futuro brilhante, infelizmente não tiveram, escolheram o crime, mas acredito que as pessoas que nascem no gueto, não entram assim por conta própria, não entram no crime só por entrar, tem muitas coisas que fazem os chegados fazerem esse tipo de escolha.

Tudo começa quando criança, o ensino que não chega, o desemprego que leva a maioria dos pais a matar sua revolta na bebida alcoólica, uma coisa vai girando milhares de outras coisas. Assim, muitos daqui vão crescendo sem estrutura. Quando vão ver já tão envolvido até o pescoço, tem que prestar conta pra justiça, passar por torturas no distrito e ficar preso numa cadeia super lotada, sendo tratado feito bicho. Na verdade isso já é um processo seletivo, criar pra depois de grande exterminar.Com muita sorte, o hip-hop chegou até mim antes que acontecesse algo pior, mas só o fato de ver uma grande maioria de pessoas que crescem nos guetos, sendo mortas pelo governo, me deixa bastante triste. Perdemos muitos irmãos diariamente e nada é feito contra isso.

Sempre quando políticos aparecem puraqui, vem com os mesmos discursos ensaiados e bonitos. São muitas promessas de melhorias, capazes de induzir o povo a votarem neles e o povo periférico vota mesmo, não porque são “burros”, como muitos dizem, mas porque o povo sonha, tem esperança que um dia esse país vai vingar e vai ter alguém honesto no poder, mas por outro lado, muitos já estão acordando, já não tão abraçando idéia de engravatado e isso prova que tem acontecido uma certa evolução quando se fala de política na periferia. Uma grande parcela de culpa, no meu entender, dos problemas periféricos são dos políticos, cada promessa não cumprida mata centenas de pessoas por dia.

Políticos corruptos que nunca vão pra atrás das grandes, na lei sempre tem uma brecha pra livrar o deles e cada vez mais me convenço, que lei brasileira foi feita só pra pobres, porque ela só funciona com a gente.O que acontece desse “lado escuro”, como dizem os burgueses, é problema nosso e isso fica mais evidente quando eles tentam ajudar alguém daqui.Por quê?Quando programas do estilo Gugu e Faustão, fazem matérias em favelas, o que eles estão buscando afinal?Será que estão interessados em ajudar, ou em comover o publico que assistem seus programas, para dar audiência?

Quem está interessado em “ajudar”, não beneficia uma única família. Se o propósito do programa fosse ajudar, ajudaria em massa, porque resolvendo o problema de um, não resolve o problema de um todo.O hip-hop e os escritores periféricos, também são uma saída contra o sistema. Achamos nossa forma de protestar, reivindicar e mostrar a verdadeira realidade, que é distorcida pelas emissoras.

Hoje conseguimos resgatar a auto-estima e mostramos quem é o verdadeiro inimigo, seja numa letra de rap, num escrito, ou em outro tipo de luta social que visa melhorias para periferia. Temos nossa própria cultura, nossa forma de pensar e se, de repente, os poderosos do Brasil, acharam que iriam passar por cima de nóis assim tão fácil e não iria ter revide desse lado, é porque eles não conhecem a história do país onde moram.

Os descendentes de Zumbi tão em cena.

CONTESTAÇÃO, POESIA, ARTE E UNIÃO por Michel da Silva

O rap nacional é um estilo musical que se consolidou, com todos os méritos, como um representante de respeito na música popular brasileira atual. Muitos críticos ainda resistem á força dessa expressão dizendo que o rap é produzido no Brasil como forma de copiar o estilo estadunidense de ser. Quem é sabe: Nenhuma música, nenhuma expressão artística, surge de uma origem pura e única, pois arte é uma manifestação que se transforma constantemente.
Mesmo o rap que muitos afirmam ter surgido nos Estados Unidos, na verdade tem seus primeiros registros de estilo na Jamaica e até mesmo em alguns países do continente africano. Não é por acaso que foi justamente nos guetos afro-estadunidense que esse estilo se consolidou e se tornou o rap, que aqui no Brasil reflete, nas periferias, onde vive a maioria afro-brasileira, de forma diferente, pois corresponde a nossa realidade.


No rap a realidade é apresentada em forma de letra e música, ou seja, ritmo e poesia (Rhythm And Poetry). Por isso, podemos considerar que as letras musicadas no rap são de fato poesias. Poesias escritas na grande totalidade por artistas vindos das periferias de todo Brasil, poesias que retratam as dificuldades, a exclusão, o preconceito social e racial, mas também o valor e a dignidade da nossa vivência, da nossa cultura.

Ainda hoje os letristas de rap, que muitas vezes são os próprios Mcs, não gostam de serem chamados de poetas. Percebo que isso se deve ao fato de que muitos rappers não querem colocar como carro chefe de sua produção artística a palavra arte, pois se identificam primeiramente como contestadores, combatentes do sistema e não como artistas.

A palavra arte ainda é mal apresentada e discutida em nosso meio. Sempre que nos referimos a palavra arte ou artista, na mente de muitas pessoas vem à idéia: “Artista é quem é famoso, que aparece na televisão" (não importa como), mas vai muito além disso. Escrever um manifesto em forma de rima, de forma criativa e original não é somente um manifesto, é também uma poesia, uma expressão artística literária, é uma arte feita com propósito.


Quando a literatura passou a ser produzida nas periferias de forma mais intensa, não somente nas letras de rap, mas também através de obras de romance, jornalismo e até mesma na poesia escrita, nas obras de Carolina Maria de Jesus (pioneirissima), Ferréz, Alessandro Buzo e Sergio Vaz, por exemplo, a periferia passou a considerar a literatura de forma diferente, ou seja, a arte de forma diferente.
O que dizer de livros como Quarto de Despejo – Diário de uma favelada (Carolina Maria de Jesus) Capão Pecado (Ferréz), O Trem – baseado em fatos reais (Alessandro Buzo) e Colecionador de Pedras (Sergio Vaz), senão afirmar que é são obras literárias de qualidade e não somente protestos. A diferença é que a poesia na letra de rap, - ou até mesmo publicada em livros, como já fez GOG, Gaspar do Z´africa Brasil, Versão Popular, Cascão do Trilha Sonora do Gueto, entre outros - os nossos romances, contos, crônicas, ou seja, nossa literatura é uma arte que vem pra trazer uma proposta diferente, vem (r) evolucionando através da cultura, vem pra escrever e colocar em evidência tudo aquilo que o sistema não quer: Exigir nossa parte do bolo.

Eles (grande mídia, academias, centros elitistas) não afirmam que nóis somos escritores, músicos, artistas, pois não somos como eles, fazemos diferente, é nóis por nóis. O reflexo disso é grande número de livros, cds, filmes, teatro, saraus que está sendo produzido nas periferias. Já temos até Agenda Cultural e se não bastasse a Cooperifa ta organizando a Semana de Arte Moderna da Periferia. Tem muitos manos e minas unidos pra isso tudo acontecer, senão num vira!

O lance é o seguinte a cultura periférica ta unida, pra quem se identifica, pra quem já se ligou que num adianta querer ser artista de estrelato e não ter caráter, não ter atitude. Não adianta protestar e ser vaidoso, querer aplausos e não aplaudir o semelhante, desse jeito só reproduz o que já ta ai, o barato é pelo contrário e pelo diferente. O caminho da vitória ta mais que apresentado, é colocar em prática a proposta da nossa poesia, da nossa literatura, da nossa arte, pois o outro lado ta de chapéu e ainda pensa que a gente não tem arte própria, não tem cultura e continua corrompendo os que sonham em ser que nem eles, artistas da mesmice. Os opostos estão declarados, basta escolher qual será seu lado no campo de batalha. Porque “Sozinho se num guenta...”... Já diz o poeta.

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Michel da Silva
Autor do livro "Desencontros" e co -autor de "Suburbano Convicto - Pelas Periferias do Brasil".